Lucas (nome fictício) tinha 8 meses e um aspecto tão franzino e frágil que Maria José não teve coragem de pegá-lo no colo e tirá-lo da rede em que estava deitado.
"O que me impactou, ao abrir aquela rede, foi ver ele gemendo, com o olhar parado, sem nenhuma lágrima", relembra ela. "E a gente podia contar todos os ossos do corpo dele. Não tive reação."
A cena ocorreu em maio de 2019, em uma casa na zona rural de Rio Branco, capital do Acre, onde Maria José Oliveira Sousa Silva é coordenadora estadual da Pastoral da Criança. Desde então, Maria José vê um empobrecimento ainda maior das comunidades atendidas.
"Temos famílias aqui que não têm nenhum salário, que me ligam à noite dizendo que não comeram nada o dia inteiro. Famílias em que o pai volta do dia de trabalho sem dinheiro para alimentar todos os filhos. Na pandemia, recebemos muitos pedidos de ajuda, de gente passando fome e vivendo do mínimo, sem casa para morar. Quem era pobre ficou miserável. A situação está se agravando, e muitos se perguntam: 'como vai ser quando acabar o auxílio emergencial (do governo)?'."
O caso de Lucas acendeu um alerta dentro da coordenação geral da entidade beneficente, que atende crianças em situação de vulnerabilidade no Brasil desde a década de 1980.
"Já no ano passado, mesmo antes da pandemia, a gente vem percebendo que o pessoal (equipes nas esferas estaduais) está voltando a relatar casos graves de subnutridos", diz à BBC News Brasil o médico Nelson Arns Neumann, coordenador da Pastoral da Criança.
"No começo da Pastoral era muito frequente ver crianças de apenas pele e osso, e depois a gente não tinha mais visto isso. Tanto que esses casos (novos) escalaram rápido para a coordenação nacional, porque as equipes tinham perdido a habilidade de lidar com eles."
Embora o calvário do bebê Lucas — que será contado em mais detalhes ao longo desta reportagem — seja extremo e não represente a situação nutricional geral do país, ele reflete uma piora nas condições de vida das famílias mais pobres. Algo que é respaldado tanto por dados estatísticos quanto pela observação de agentes comunitários, como Maria José, que atua na Pastoral da Criança do Acre há 20 anos.
"Esse foi um caso de uma família muito desestruturada, mas, no contexto de pobreza, não acho que seja um caso isolado", diz ela à BBC News Brasil.
Para fetos, bebês e crianças pequenas, essa desnutrição (ou mesmo a má nutrição) vivenciada no início da vida pode deixar sequelas de longo prazo. Isso porque a ausência da comida muda o metabolismo do corpo infantil, influenciando o funcionamento e o tamanho de órgãos como fígado e coração.
"Desde a fome holandesa (episódio de 1944, durante a Segunda Guerra), vimos que, quando vivida na gestação, a fome tem efeitos para o resto da vida: os holandeses que nasceram naquela época viviam 10% a menos, tinham mais esquizofrenia e doenças metabólicas", afirma Arns Neumann.
"No Brasil, a criança que nasceu com baixo peso tem o dobro de chance de ser diabética e ter pressão alta, (justamente comorbidades associadas a) quem morre mais de covid-19. As crianças de 40 anos atrás (que tiveram má alimentação) estão morrendo mais por covid hoje", conclui ele.
Isso não quer dizer, no entanto, que não seja possível minimizar esses danos nem proporcionar uma vida plena a essas crianças — principalmente se as intervenções ocorrerem cedo, quando a chance de eficácia é maior.
Arns Neumann explica que o corpo também cria mecanismos próprios para preservar o cérebro da desnutrição. "Temos relatos do início dos trabalhos da Pastoral, de crianças ultradesnutridas, que com um ano de vida, pesavam menos do que quando tinham nascido. E elas se recuperaram, passaram (no vestibular) de universidades federais. Mas, em compensação, aos 40 anos, tinham colesterol alto e obesidade, efeitos ligados (ao que tinham vivido nos) seus primeiros mil dias de vida."
Agora, a esperança é de que o bebê Lucas supere essas perspectivas. Maria José ainda o acompanha de longe: hoje, com pouco mais de 2 anos, ele "está tão lindo, caminha e fala normalmente", conta ela.
Uma grande diferença em relação ao ano passado, quando a agente comunitária o acompanhou durante semanas de internações hospitalares, e quando ele chegou a pesar 4 quilos — metade do peso médio de um bebê de nove meses, a idade que tinha na época.
Durante uma das internações, Maria José lembra que viu o bebê desfalecer. Naquele dia, a equipe médica alertou que ele corria risco de morrer.
"Além da nutrição, a gente achava que ele sentia falta de afeto", conta ela. "Então eu abraçava e beijava ele o tempo todo. Ele dormia em cima da gente (voluntárias). A gente via a vida dele indo embora do corpo, mas ele continuava com um olhar vivo."
Aos poucos, o menino foi recuperando o peso até conseguir a alta hospitalar, e Maria José e as demais voluntárias da Pastoral se revezavam para visitá-lo e alimentá-lo em casa.
Mas a família de Lucas, que tem outros seis irmãos, ainda vive em grande vulnerabilidade e segue sendo monitorada pelo conselho tutelar em Rio Branco.
A piora na nutrição infantil também é observada nas grandes áreas urbanas das cidades mais ricas do país — e uma das ausências mais sentidas dos últimos meses é a da merenda escolar, que tem um papel muito importante na vida das crianças mais pobres.
Desde 2009, uma resolução do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, órgão do Ministério da Educação, determina que as refeições escolares supram 70% das necessidades nutricionais diárias das crianças de zero a três anos que estudem em período integral, e 30% das que estudem meio período.
Essa ausência, junto ao empobrecimento das famílias, a mudanças (para pior) nos hábitos alimentares e à dificuldade no acesso à saúde pública básica — que teve serviços diminuídos ou suspensos por causa do coronavírus —, tem criado um contexto preocupante na saúde física, mental e nutricional das crianças, afirma Maria Paula de Albuquerque, gerente médica do Centro de Recuperação Educação Nutricional (Cren).
A ONG, conveniada à Prefeitura de São Paulo, atende crianças e adolescentes em má situação nutricional que moram em áreas vulneráveis da capital paulista.
"Tem havido um consumo de mais alimentos processados (como salgadinhos e doces), porque muitas mães têm dificuldade em cozinhar", afirma a médica.
Esses alimentos, além de serem pobres em nutrientes, têm sal, açúcar e gordura em excesso. "As nossas crianças com excesso de peso pioraram muito."
E essa nem é a questão mais urgente, prossegue Albuquerque.
"Embora não tenhamos os dados estatísticos, percebemos claramente duas coisas durante a pandemia: 1) as famílias estão bem mais desorganizadas quanto à oferta, frequência e quantidade de alimentos em casa. 2) Todos estão com a saúde mental muito prejudicada, principalmente as mães e os adolescentes. E, no Brasil, a desnutrição não é só resultado da falta de acesso à comida: se o cuidador não tem como cuidar das crianças, a situação delas fica muito complicada."
Ela também teme que as crianças sejam prejudicadas para além da duração da pandemia.
"O impacto da desnutrição é muito ruim na primeira infância. As crianças anêmicas têm pior rendimento escolar. E tanto o excesso de peso quanto a perda de peso estão programando adultos mais doentes: teremos mais hipertensão, diabetes e obesidade daqui a três décadas."
Tanto a Pastoral quanto o Cren tiveram que reduzir drasticamente suas ações presenciais por causa da pandemia, o que dificultou a coleta de dados importantes, como peso e altura das crianças. Albuquerque afirma também que há um "apagão" de parte dos dados da primeira infância — alguns estão desatualizados há anos, dificultando diagnósticos mais amplos.
Mas um conjunto de números disponíveis traz razões para preocupação.
Metade das crianças com menos de cinco anos (6,5 milhões) do Brasil vivia em lares com algum grau de segurança alimentar, segundo a Pesquisa de Orçamento Familiar 2017-2018, divulgada no último mês de setembro pelo IBGE.
No total, 10,3 milhões de brasileiros moram em casas onde houve privação severa de alimentos em pelo menos alguns momentos de 2017 e 2018.
Em julho, o Unicef (braço da ONU para infância) e o Ibope perguntaram a 1,5 mil famílias sobre como seus hábitos alimentares haviam mudado na pandemia. E a resposta é que um em cada cinco brasileiros com 18 anos ou mais passou por algum momento em que não tinha dinheiro para comida quando os alimentos da casa acabaram.
Nas casas com crianças ou adolescentes, um terço dos entrevistados declarou ter aumentado o consumo de comida industrializada, como macarrão instantâneo, biscoitos recheados e enlatados.
No mundo, um estudo publicado em julho na revista científica The Lancet estimou que a pandemia levará à desnutrição 6,7 milhões de crianças a mais neste ano.
E como combater isso, sem poder realizar visitas domiciliares e tendo de diminuir os atendimentos presenciais por causa da pandemia?
"Estamos apostando muito no fortalecimento da economia local", afirma Albuquerque, do Cren, em São Paulo. Com a ajuda financeira de parceiros e doadores, a entidade está ajudando a comprar de agricultores orgânicos que antes vendiam sua produção para escolas.
"Com isso, conseguimos fazer cestas básicas de frutas, verduras, legumes e ovos orgânicos" para famílias em vulnerabilidade nutricional, diz a médica.
"Daí fizemos vídeos curtos para ajudá-las na nova rotina da casa, ensinando desde a fazer uma omelete até a acessar os benefícios oferecidos pelo governo."
Na Pastoral da Criança, a principal ferramenta para trabalhar à distância tem sido um app próprio de celular, que a entidade fez para passar informações às famílias — por exemplo, dicas de brincadeiras, alimentação e higiene com as crianças em casa — e para ajudar a capacitar as equipes de voluntários, explica a nutricionista Caroline Dalabona.
Como o app precisa ser sincronizado com os dados nutricionais das famílias atendidas, a Pastoral pleiteia com as empresas de telefonia que permitam que o aplicativo rode sem precisar usar dados dos planos de celular.
A entidade também conta com os olhos e ouvidos de agentes comunitários e voluntários locais para identificar os casos mais graves e ajudá-los.
"Em Campo Grande (MS), temos uma líder comunitária que ela própria estava passando dificuldades (por estar sem emprego). Mas, quando ela conseguiu uma cesta básica para si, a dividiu com uma mãe, que passava fome com duas crianças e já falava em suicídio", afirma Nelson Arns Neumann.
"Então temos muita solidariedade entre os mais pobres. O problema é que é pobre dividindo com pobre."