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Para suprir despreparo de calouro, faculdade agora ensina bê-á-bá de português e matemática 

Redação com Agência Senado
23 junho 2023

Nas aulas de português, o professor explica a diferença entre “porque” e “por que”, apresenta as regras de acentuação das palavras e ensina a construir frases com sujeito e predicado. Nas de matemática, os alunos aprendem a somar frações, desvendam a lógica da porcentagem e entendem a utilidade da regra de três.

Embora costumem ser destinadas a crianças e adolescentes do colégio, lições tão elementares quanto essas vêm sendo cada vez mais dadas dentro da universidade. A Agência Senado identificou instituições de ensino superior em todo o Brasil que oferecem aulas de recuperação aos calouros — também chamadas de reforço, revisão ou nivelamento.

A decisão é motivada pela má qualidade das escolas da educação básica, que em geral não conseguem dar aos alunos o conhecimento mínimo para o início de um curso de graduação.

De acordo com a professora Maria da Conceição Azevêdo, que coordena o nivelamento em língua portuguesa no campus da Universidade Federal do Pará (UFPA) na cidade de Bragança, a dificuldade entre os universitários novatos é generalizada:

— Muitos chegam aqui sem conseguir interpretar textos, inclusive enunciados curtos de exercícios, ou escrever de forma compreensível. Já encontrei alguns casos de estudantes analfabetos funcionais, que precisaram ser acompanhados muito de perto.

A UFPA também organiza cursos de recuperação em matemática, física e química.

O professor Ricardo Ruviaro, responsável na Universidade de Brasília (UnB) pelo nivelamento em matemática, conta que é na segunda semana de aula que a recuperação é apresentada aos novatos e iniciada:

— Na primeira semana, quando os calouros dos mais diversos cursos, como as engenharias, começam a disciplina Cálculo 1, eles de imediato sentem o baque e se desesperam. Entendem que não sairão do lugar por não saberem somar número inteiro, fazer divisão por zero, calcular raiz quadrada. Por isso, na segunda semana, quando oferecemos o nivelamento, eles já têm plena consciência do problema e se inscrevem em massa, sem pensar duas vezes.

As federais de Brasília e do Pará dizem que o déficit de conhecimento afeta igualmente os alunos oriundos de escolas públicas e os de escolas privadas. Tampouco há diferença significativa entre cotistas e não cotistas, que começam o curso superior com dificuldades parecidas.

Nas duas universidades, os estudantes são livres para frequentar ou não os cursos de recuperação, que não fazem parte da grade curricular oficial da graduação. Trata-se de aulas paralelas. Participa apenas quem sente necessidade.

Na UnB, dos 40 mil estudantes de graduação, o expressivo público de 3 mil tem assistido voluntariamente às lições de matemática básica neste semestre.

— Embora não haja chamada, nota ou reprovação, a participação no nivelamento é alta durante o semestre inteiro porque os estudantes se motivam quando passam a ter um bom rendimento nas disciplinas obrigatórias — continua Ruviaro, da UnB.

As universidades privadas foram as primeiras a adotar as aulas de recuperação, no fim da década de 2000.

Na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), estão obrigados a assistir às lições básicas de português e matemática os calouros que obtiveram pontuação baixa nessas disciplinas no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem).

Na Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado (Fecap), de São Paulo, o reforço de português e matemática não é compulsório. No entanto, a instituição estimula a adesão oferecendo pontos extras nas disciplinas obrigatórias aos estudantes que participam.

No Centro Universitário Carioca (UniCarioca), no Rio de Janeiro, as aulas de recuperação existem há 12 anos e a elas podem assistir os alunos e também os seus familiares próximos. A instituição abriu o acesso por entender que o português e a matemática são imprescindíveis não apenas para a vida acadêmica, mas para a vida cotidiana.

As instituições públicas, por sua vez, aderiram à tendência mais recentemente, nos últimos seis anos.

Promovem aulas de recuperação, por exemplo, a Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), a Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf), a Universidade Estadual do Maranhão (Uema), a Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG) e o Instituto Federal de Mato Grosso (IFMT).

De forma pragmática, o que as instituições buscam é reduzir a repetência dos estudantes e a taxa de abandono dos cursos.

Alguns dias atrás, a equipe de reportagem da Agência Senado acompanhou uma aula de matemática básica na UnB. O anfiteatro estava lotado de alunos de diversos cursos. Dos 200 presentes, muitos faziam anotações no caderno, outros digitavam no laptop e alguns usavam o celular para fotografar as fórmulas que o professor deixava no quadro-negro.

Entre os participantes, estava Vitória Floriza, que tem 24 anos e está no quarto semestre do curso de estatística. Ela conta que sua vida mudou depois que passou a frequentar o curso de recuperação. Antes dele, a estudante foi desligada da UnB por excesso de reprovações. Ela conseguiu voltar à instituição depois de apresentar um recurso.

— Eu cheguei aqui sem base nenhuma em matemática, que é essencial para o curso de estatística. Por mais que os professores explicassem e eu me esforçasse e estudasse, nada fazia sentido. Era como se eles estivessem falando grego. Senti desespero, tive crise de ansiedade, chorei. Minha autoestima foi lá embaixo — ela lembra.

Floriza atribui a sua defasagem à escola pública que frequentou.

— Eu só me dei conta de que a minha formação escolar era falha quando cheguei à universidade. Lembrei que era bastante comum que os professores chegassem ao fim do ano tendo nos ensinado apenas a primeira metade dos livros didáticos. Isso acontecia em quase todas as disciplinas. Isso significa que fiquei sem aprender metade de todo o conteúdo do ensino médio.

Quando foi reintegrada, recebeu a orientação de frequentar as aulas de recuperação. Não se pode dizer que o que ela está vendo agora seja exatamente reforço ou revisão. Trata-se, isso sim, de uma completa novidade. Floriza avalia:

— Tudo mudou. Meu desempenho melhorou bastante e entendi que não era uma incapacidade minha. O que me faltava eram simplesmente as aulas que não tive na escola.

Muitos estudantes não tiveram condições adequadas para o estudo on-line durante a pandemia (Divulgação/Fundação Lemann)

A UnB também recruta os seus mestrandos e doutorandos para ajudar os novatos da graduação.

— Nunca digo a um calouro que a pergunta que ele me faz é básica, impertinente ou boba. Ele precisa se sentir acolhido pela universidade e motivado a permanecer no curso. Se o estudante entra aqui tendo deficiências, a culpa não é dele — afirma Wendy Almeida, que faz doutorado em matemática na UnB e atua como tutora de calouros.

A professora Marly dos Anjos Nunes, que responde pelo nivelamento em matemática na UFPA, conta que os docentes universitários precisam reinventar suas próprias metodologias na hora de dar as aulas de recuperação:

— Quando comecei a dar as aulas, confesso que tive muita dificuldade e me senti fora do meu mundo. Como professora universitária, eu não estava acostumada a ensinar conteúdos tão básicos nem a lidar com alunos com aquele tipo de dificuldade. Com o tempo, vi que preciso ser bastante clara e didática e, sempre que possível, mostrar as aplicações concretas da matemática no dia a dia das pessoas. Quando o professor tem a sensibilidade para agir assim, os estudantes deslancham.

Dados do Ministério da Educação mostram que a evasão do ensino superior público vem aumentando ano após ano no Brasil. Entre as principais razões, estão as dificuldades financeiras dos alunos (que precisam trabalhar ou não podem custear, por exemplo, o material de estudos e o transporte diário) e justamente o despreparo deles para acompanhar os cursos.

A taxa de abandono das universidades públicas explodiu em 2020, com o início da pandemia de covid-19. As instituições privadas sofreram um golpe semelhante.

As universidades sentiram o impacto negativo da pandemia também na qualidade dos estudantes que os colégios lhes enviam, tanto os públicos quanto os particulares. As deficiências deles, já significativas, ficaram ainda mais pronunciadas.

Por força do necessário distanciamento social, as escolas do Brasil passaram um longo período fechadas e nem todas conseguiram oferecer aulas on-line. Nas escolas que conseguiram, as aulas por vezes foram insatisfatórias ou em número insuficiente, fosse pelo despreparo dos professores para o mundo virtual, fosse pela falta de computador ou celular ligado à internet nas mãos dos estudantes.

Além disso, os alunos podiam não contar com o apoio dos pais no ensino remoto ou não dispor do ambiente adequado dentro de casa para assistir às aulas. A pandemia também afetou a saúde emocional de muitos jovens, com reflexos no rendimento escolar.

A pandemia piorou um quadro que já era ruim. Levantamentos oficiais mostram que existem no Brasil escolas da educação básica sem biblioteca, sala de leitura, computador e acesso à internet. Ainda há colégios que não dispõem sequer de banheiro e energia elétrica.

No Senado, a Comissão de Educação (CE) criou durante a pandemia uma subcomissão para discutir a situação do ensino diante do fechamento das escolas e propor formas de mitigar e superar os inevitáveis prejuízos educacionais.

Especialistas e gestores participaram de 20 audiências públicas em 2020 e 2021. As conclusões da subcomissão foram levadas ao Ministério da Educação (MEC).

O presidente da CE, senador Flávio Arns (PSB-PR), resume:

— Na subcomissão, separamos em seis eixos as ações necessárias: aumento do acesso à escola, medidas para a permanência, garantia de conexão à internet, incremento da infraestrutura física, concessão de recursos financeiros adequados e recomposição da aprendizagem. Este último eixo é um dos mais emergenciais neste momento. As escolas precisam mensurar as lacunas de aprendizagem deixadas pela pandemia, identificar as necessidades específicas dos alunos e elaborar estratégias para supri-las, como aulas de reforço e educação em tempo integral.

Arns lembra que a União, os estados e municípios se dedicam majoritariamente a etapas específicas do ensino (a União se concentra no ensino superior, os estados ficam com o ensino médio e os municípios respondem pela educação infantil e pelo ensino básico) e aponta que, nesse sistema, faltam coordenação e colaboração.

O senador defende a aprovação de um projeto de lei que cria o Sistema Nacional de Educação, que garantiria a articulação entre os diferentes gestores educacionais, de modo que passem a caminhar de mãos de dadas e na mesma direção (PLP 235/2019). Elaborado pelo próprio Arns, o projeto já foi aprovado pelo Senado e agora está na Câmara dos Deputados.

— Os impactos da pandemia foram enormes, mas não são irreversíveis — ele diz.

Os trabalhos da subcomissão já se encerraram, mas o problema da educação pós-pandemia não saiu do radar do Senado. No início deste ano, os senadores abriram na CE outra subcomissão, esta com o objetivo de analisar especificamente o ensino médio, que agora passa por uma reforma que divide a opinião dos especialistas.

O MEC foi procurado pela Agência Senado para tratar do tema desta reportagem, mas não se manifestou.

A senadora Teresa Leitão, presidente da subcomissão que analisa o ensino médio do Brasil, e o senador Flávio Arns, que dirige a Comissão de Educação do Senado (Edilson Rodrigues/Agência Senado)

Consultora legislativa do Senado na área de educação e ex-professora da educação básica, Issana Nascimento Rocha resume o estado das escolas no Brasil:

— Antes da pandemia, existia uma lacuna entre a educação básica e o ensino superior. Agora, o que existe é um verdadeiro precipício.

Rocha explica que, além do descompasso entre União, estados e municípios, existem outros motivos para as escolas não conseguirem entregar estudantes minimamente capacitados para as universidades. Um deles é o perfil dos professores da educação básica:

— O magistério não atrai os melhores. A perspectiva salarial dos professores é baixa. Não é uma profissão valorizada socialmente. Falta material básico para o trabalho, como livro, papel, projetor e ventilador. A frustração é grande. Os melhores não querem o magistério e preferem outras profissões. Quando vão para a docência, ficam pouco tempo na sala de aula porque acabam passando em outro concurso e mudando de carreira.

De acordo com a consultora do Senado, não se pode atribuir à educação básica toda a culpa do despreparo dos calouros das universidades. As próprias instituições de ensino superior têm uma parcela considerável da responsabilidade, já que são elas que formam os professores que dão aula nas escolas.

Katia Smole, que em 2018 atuou no MEC como secretária nacional de Educação Básica e hoje é diretora-executiva do Instituto Reúna (ONG da área educacional), concorda:

— O professor normalmente tem um grande domínio do conhecimento específico da matemática, da língua portuguesa etc., mas não sabe ensinar aos jovens de forma adequada. Ele estudou na universidade a teoria da aprendizagem, mas não aprendeu a colocá-la em prática. Essa situação tem piorado porque os cursos de formação de professores vêm sendo cada vez mais ministrados de forma virtual, no ensino à distância.

Na avaliação de Smole, falta diálogo entre a escola e a universidade:

— Temos universidades públicas e privadas de excelência em educação, mas muitas vezes o que os pesquisadores fazem é apenas falar sobre a escola básica, deixando de falar com a escola básica. As universidades precisam trabalhar lado a lado com as escolas e as secretarias de Educação na elaboração e na execução de alternativas que melhorem a qualidade do ensino.

Estudantes de escola quilombola na zona rural de Morros, no Maranhão: educação pública enfrenta infraestrutura carente (Reprodução/Blog Adolescentes Mobilizadores)

Os especialistas ouvidos pela Agência Senado entendem que é positiva a iniciativa das universidades de oferecer aulas de recuperação para os estudantes, mas ressalvam que isso é uma medida paliativa, que não chega à raiz do problema.

Eles afirmam que, dado o crescimento acelerado do ensino superior ao longo dos últimos 20 anos tanto na rede privada (com a ampliação dos empréstimos pelo Fies e a concessão de bolsas de estudo pelo ProUni) quanto na rede pública (com a abertura de novas universidades federais), era esperado que o perfil dos ingressantes de alguma forma mudasse.

A solução, então, seria apertar o vestibular, de maneira que os alunos com menos conhecimento não entrem na universidade?

— Não — responde Celso Niskier, presidente da Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (ABMES), que reúne instituições privadas. — Rejeitar os estudantes na porta de entrada não resolve o problema. O ensino superior não pode fugir da sua missão, que é entregar à sociedade pessoas capacitadas nas suas respectivas áreas, não importando em que condições tenham chegado.

Jerônimo Tybusch, um dos diretores da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), entende que tornar os processos seletivos mais difíceis seria voltar àquele tempo em que a universidade era lugar de alguns poucos privilegiados. Ele afirma:

— A educação não pode ser excludente, ainda mais neste país com tantas desigualdades sociais.

Fonte: Agência Senado

 

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